EU NUNCA FUI A CABUL. Nem a Jalalabad, nem a Kandahar, nem a Mazar-i-Sharif. Conheço estes nomes das notícias e que me lembre nunca os terei ouvido por boas razões. {...} Conseguimos imaginar a noite demasiado escura de Jalalabad. Conseguimos imaginar homens de barba e mulheres de burqa. Conseguimos até imaginar o cheiro a lixo às portas de Herat, onde «cheira tão mal como se tudo estivesse podre». Já não seremos capazes de imaginar uma família como a de Shaharzad, «uma casa tão pobre que estrela ovos numa bilha de gás, mas tão rica que lê os filósofos sufis e Wittgenstein». Como não imaginamos, no país das burqas e da sharia, uma equipa feminina de boxe treinada por um jovem afegão regressado da América. Nem imaginamos, entre o cheiro a lixo, o perfume a rosas. {...} É preciso ir lá. É preciso que nos levem lá. E é preciso coragem: para ver as crianças de espinha bífida no hospital de Kandahar; para andar à boleia em aviõenzinhos que quase permitem tocar com os dedos o cume das montanhas; para ouvir dizer na língua dos pashtun que aquilo mais lhes falta é amniat - sabendo que amniat significa segurança - e ainda assim continuar, querer conhecer gente, tomar notas, correr riscos, ver, ouvir, dar a ler. Este livro é um acto de coragem. É um acto de optimismo, também. {...} É esse optimismo que permite a Alexandra Lucas Coelho afastar quaisquer receios com uma espécie de fatalismo paradoxalmente empreendedor: «não há nada a fazer». Mesmo quando por instantes se lhe infiltra na mente a dúvida acerca do conhecido que a certa altura a transforma, sabe-se lá para onde, numa terra onde «um estrangeiro é um acepipe». «Não há nada a fazer.» E a viagem continua. {...}